quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A Prova Moral Da Existência De Deus



                                                 Penso, logo existo


   De há muito notara que, em relação aos costumes, é preciso algumas vezes seguir, como corretas, opiniões que sabemos serem muito incertas, como já foi dito; mas, como desejava dedicar-me então somente à pesquisa da verdade, julguei que era necessário que fizesse precisamente o contrário, e que rejeitasse como absolutamente falso tudo aquilo em que eu pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, depois disso, não restaria alguma cousa na minha crença que fosse inteiramente indubitável.
    Assim, em virtude de os nossos sentidos algumas vezes nos enganarem, quis supor que nada havia que fosse tal como eles nos levam a imaginar. E porque há homens que se enganam  quando raciocinam, até no que diz respeito aos logismos, julgando eu que era tão sujeito a erros como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões que anteriormente tomara como demonstrações.
  Finalmente, considerando que os mesmos pensamentos que temos quando acordados também nos podem acudir quando dormimos, sem que nenhum seja verdadeiro, resolvi considerar, fingir, que todas as cousas que haviam penetrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões dos meus sonhos,. Mas logo após percebi que, quando pensava que tudo era falso, necessário se tornava que eu- eu pensava- era alguma cousa, e notando que esta verdade- penso, logo existo - era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava.
     A seguir, examinando com atenção que cousa eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo ou lugar onde eu existisse, mas que não podia, no entanto, admitir que não existia, e que antes, ao contrário, pelo fato mesmo de pôr em dúvida a verdade das outras cousas, daí decorria muito evidente e certamente que eu existia- ao passo que, se eu tivesse somente cessado de pensar, ainda que tudo o mais que existia- por isso reconheci que eu era uma substância cuja essência ou natureza não é outra cousa senão pensamento que, para existir, não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de cousa alguma material. De sorte que este eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e até mais fácil de conhecer que este, e, embora não existisse o corpo, ela não deixaria de ser o que é.
     Depois considerei o que uma proposição em geral requer para ser verdadeira e certa, pois que acaba de achar uma que sabia ser certa. Julguei então que devia também saber em que consiste esta certeza. E tendo notado que nada há neste penso, logo existo, que me assegure que digo a verdade, a não ser que vejo bem claramente que, para pensar, é necessário existir, julguei poder tomar como regra geral que as cousas que concebemos muito clara e muito distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em bem distinguir quais são aquelas que concebemos distintamente.
    Isto posto, pensando que duvidava e que, por conseguinte, o meu ser não era completamente perfeito, pois via claramente que era maior perfeição o conhecer que o duvidar, ocorreu-me indagar de onde aprendera a pensar em alguma cousa mais perfeita do que eu, e percebi, evidentemente, que deveria ser em alguma natureza que fosse, com efeito, mais perfeita.
      Quanto aos pensamentos que tinha, relativos a diversas outras cousas exteriores a mim, como o do céu, da terra, da luz, do calor e de mil outras, não tinha tanto trabalho em saber de onde vinham, porque, nada notando neles que me parecesse superior a mim, podia crer que, se fossem verdadeiros, dependiam da minha natureza naquilo que esta tem de perfeito e, se o não fossem, que os recebera do nada, isto é, que esses pensamentos estavam em mim porque a minha natureza possuía imperfeições.
      Mas isto não acontecia com a ideia de um ser mais perfeito que o meu, porque aceitá-la como vinda do nada era cousa manifestamente impossível; e tendo em conta que não repugna menos admitir que o mais perfeito é uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que o nada proceda de alguma cousa, tampouco podia admitir que essa ideia eu tirara de mim próprio. De maneira que só restava haver sido ela posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita que eu e que tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, isto é, para explicar-me com uma palavra, que fosse Deus. A isto acrescentei que, desde que conhecia algumas perfeições que não possuía, eu não era o único ser que existia, mas que necessariamente devia existir algum outro mais perfeito do qual eu dependesse e do qual tivesse adquirido tudo quanto possuía. Porque, se eu fosse o único ser, independente de qualquer outro, de maneira que tivesse recebido de mim mesmo todo esse pouco pelo qual participava do ser perfeito, teria podido dar a mim próprio, pela mesma razão, tudo mais que reconhecia faltar-me, e assim ser eu mesmo infinito, eterno, imutável, onisciente, onipotente e, em suma, possuir todas as perfeições que notava existirem em Deus.
      Com efeito, segundo os raciocínios que acabo de apresentar, para reconhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha era capaz disso, bastava considerar, acerca de todas as cousas de que encontrasse em mim alguma ideia, se era perfeições ou não possuí-las; e estava certo de que nenhuma daquelas que mostravam alguma imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam. Assim, eu via que a dúvida, a inconstância, a tristeza e outras cousas semelhantes não podiam existir em Deus, pois que a mim próprio seria bem agradável estar isento delas. Além disso, possuía ideias de muitas outras cousas sensíveis e corporais; porque, embora supusesse que sonhava e que tudo quanto via ou imaginava era falso, não podia negar todavia que essas ideias não existissem no meu pensamento; mas, por haver reconhecido em mim, claramente, que a natureza inteligente é distinta da corpórea- considerando que toda composição atesta dependência e que a dependência é manifestamente um defeito- julgava que não podia ser uma perfeição, quanto a Deus, o ser ele composto destas duas natureza e que, por conseguinte, ele o não era; mas que, se existiam alguns corpos no mundo, inteligências ou quaisquer outras naturezas que não eram totalmente perfeitas, o seu ser devia depender do seu poder, de tal modo que não podiam subsistir um só momento sem ele.
         Quis depois disso procurar outras verdades e, tendo -me proposto o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo ou um espaço indefinidamente extenso em comprimento, largura, altura ou profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter várias figuras e grandezas e ser movidas ou transportadas por todos os modos- pois os geômetras supõem isto no seu objeto de estudo- percorri algumas de suas mais simples demonstrações. E observando que essa grande certeza que todos lhes atribuem apenas se fundamenta pelo fato de serem concebidas com evidência, segundo a regra que há pouco referi, verifiquei também que nada havia nelas que me garantisse quanto à existência de seu objeto. Assim, por exemplo, eu via bem que, dado um triângulo, era mister que os seus três ângulos fossem iguais a dois retos; mas, apesar disso, nada via que me garantisse que no mundo existia um triângulo qualquer. Ao passo que, voltando a examinar a ideia que tinha de um ser perfeito, achava que a existência aí estava compreendida do mesmo modo que na ideia de um triângulo está compreendido que os seus três ângulos são iguais a dois retos, ou, com maior evidência, que na de uma esfera todas as suas partes são igualmente equidistantes de seu centro, e que,por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe, como certa é qualquer demonstração de geometria.
           Mas o que faz com que haja muitos que se convencem de que há dificuldade em conhecê-lo, e também em conhecer o que é sua alma, é que eles nunca elevam seu espírito além das cousas sensíveis e estão de tal modo acostumados a tudo considerar através de imagens - que é uma maneira de pensar peculiar para as cousas materiais - que tudo aquilo que não é suscetível de ser visto por meio de imagens não lhes parece ser inteligível.
         É assim que os próprios filósofos tem como máxima, nas escolas, que nada existe no entendimento que primeiramente não tenha estado nos sentidos, nos quais todavia é certo que as ideias de Deus e de alma nunca existiram. Parece-me que os que querem usar de sua imaginação para compreendê-las procedem como se, para ouvir os sons ou cheirar os perfumes, quisessem servir-se de seus olhos. E há ainda esta diferença: que o sentido da vista não nos garante menos da verdade de seus objetos que os do olfato ou do ouvido; ao passo que a nossa imaginação e os nossos sentidos nunca nos poderiam dar certeza de cousa alguma, sem a intervenção de nosso entendimento.
          Enfim, se há ainda homens não suficientemente convencidos da existência de Deus e de sua alma, em virtude das razões que apresentei, saibam também que todas as outras cousas de que talvez pensam estar certos - como a de possuírem um corpo, de existirem astros, uma Terra e outras cousas semelhantes - essas são ainda menos certas. Porque, embora tenhamos uma certeza moral delas, que é tal que seria extravagante das mesmas duvidar, contudo também, quando se trata de questão de certeza metafísica, não se pode negar, sob pena de passarmos por insensatos, que não seja motivo bastante para delas se duvidar o haver percebido que se pode do mesmo modo imaginar, quando estamos a dormir, que temos outro corpo e que vemos outros astros e outra Terra, sem que nada disso exista. Assim, onde nos baseamos para saber que os pensamentos que temos em sonho são mais falsos do que os outros, se muitos deles não são menos vivos e expressivos? Por mais que os melhores espíritos se disponham com prazer a estudar isto, não creio que possam dar nenhuma outra razão que seja suficiente para dissipar essa dúvida, se deles não pressupõem a existência de Deus.
            Com efeito, desde logo, aquilo que há pouco tomei como uma regra, isto é, que as cousas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, só é certo em virtude de que Deus é ou existe, de que é um ente perfeito e de que tudo que existe em nós nos vem dele. De onde se segue que as nossas ideias ou noções, sendo cousas reais, e que derivam de Deus em tudo quanto elas têm de claro e de distinto, não podem deixar de ser por isso verdadeiras. De sorte que, se temos freqüentemente outras que contêm falsidade, são as que têm alguma cousa de confuso e de obscuro, as que participam do nada, isto é, as que em nós são confusas em virtude de não sermos perfeitos. É evidente que não repugna menos admitir que a falsidade e a imperfeição procedam do nada. Mas se não soubéssemos que tudo que existe em nós de real e  de verdadeiro vem de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem as nossas ideias não teríamos razão alguma que nos garantisse que elas tinham a perfeição de ser verdadeiras.
            Ora, depois que o conhecimento de Deus e da alma nos garante a certeza dessa regra, é bem fácil saber que os sonhos que imaginamos quando estamos a dormir não devem, de modo algum,, nos levar a duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando estamos acordados. Porque, se acontecesse, mesmo quando estamos dormindo, que tivéssemos uma ideia bem distinta, como, por exemplo, que um geômetra inventasse alguma nova demonstração, seu sono não a impedia de de ser verdadeira. E quanto ao erro mais frequente de nossos sonhos, que consiste em nos representarem diversos objetos exteriores do mesmo modo por que o fazem os nossos sentidos, não importa que esse erro nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais ideias, porque elas também podem nos enganar, sem que estejamos dormindo, como quando os que sofrem de icterícia vêem tudo amarelo; ou como os astros ou outros corpos muitos afastados que nos parecem muito menores do que são. Porque, enfim, ainda que estejamos acordados ou dormindo, nunca nos devemos deixar convencer senão  pela evidência de nossa razão. É bom que se note que eu digo de nossa razão e não de nossa imaginação e de nossos sentidos. Porque, embora vejamos o sol muito claramente, não devemos julgar por isso que ele seja do tamanho que o vemos; e, embora possamos imaginar uma cabeça de leão unida ao corpo de uma cabra, não devemos concluir daí que no mundo existe uma quimera. A razão não nos diz, pois, que o que vemos ou imaginamos seja verdadeiro. Ela nos diz que todas as nossas ideias ou noções devem ter algum fundamento de verdade, porque não seria possível que Deus, que é absolutamente perfeito e verdadeiro, as tivesse posto em nós sem isso. E, desde que os nossos pensamentos não são nunca tão evidentes nem tão completos durante o sono quanto o são na vigília, conquanto algumas vezes as nossas imaginações sejam tanto ou mais vivas e expressivas, ela indica-nos ainda que não podendo os nossos pensamentos ser verdadeiros por não sermos totalmente perfeitos, o que eles têm de verdadeiro deve infalivelmente encontrar-se naqueles que temos quando acordados.



                                                                                                     René Descartes
      

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Dez Tipos De Alunos Da E.B.D

      N esses quase vinte anos que ensino na Escola Bíblica Dominical, pude traçar o perfil de cada aluno; primeiro para facilitar...